Escrito por: Hans Christian Andersen
Numa estrada cercada por floresta de ambos os lados, vemos ao fundo uma fazenda dividida por essa estrada, podia se ver uma bela e enorme árvore bem no centro dessa floresta. O dia estava ensolarado, calmo e fresco, como eram dias de verão na Dinamarca todas as janelas da casa da fazenda estavam abertas. Havia um toque de vida vindo de dentro da casa. Porém, no centro do jardim, debaixo de uma tenda feita de um arbusto de sirenes, estava um caixão aberto. Ele aguardava a tampa que o marceneiro estava fazendo para poder sepultar o morto. Ninguém veio para vê-lo. Ele estava só, deitado em seu leito e sobre sua face, um pano branco. Mas, ao se olhar de perto, podia-se notar que o semblante do morto estava em paz e até um leve ar de felicidade emanava de sua face. Algo interessante e inusitado aparecia debaixo da cabeça do morto, não havia um travesseiro como de costume, mas um livro grande e grosso. Suas folhas eram de um papel de alta qualidade e entre cada folha, uma flor, havia ali um herbário completo selecionado e colecionado de diferentes lugares. Ele havia pedido que esse livro fosse enterrado com ele. Cada flor estava relacionada a um capítulo de sua vida.
– Quem era o morto? Podemos perguntar e a resposta era: – “Um velho estudante de Uppsala, uma cidade na Suécia situada ao norte, a 70 km de Estocolmo, ele deve ter sido muito inteligente, pois aprendeu línguas, canto, sem contar que escrevia muito bem; mas então algo aconteceu... e ele parou com tudo que fazia, começou inclusive a beber bebidas alcoólicas muito fortes. Porque abandonou tudo, sua saúde um dia o abandonou também. Sem nada e não tendo a quem recorrer, escondeu-se no campo onde encontrou pessoas boas que lhe davam de comer. Apesar de tudo, ele continuava um homem bom, piedoso e simples como uma criança, mas quando uma de suas crises voltava, ele fugia para a floresta e se escondia lá como um animal que estava sendo caçado; mas se o levássemos para casa e dávamos para ele o livro com as folhas, flores e ervas secas, ele se acalmava e podia ficar sentado o dia todo a olhar para uma erva e depois para outra, e muitas vezes lágrimas escorriam pelo seu rosto; somente Deus sabia a razão dessas lágrimas! Ele pediu que seu livro fosse enterrado com ele, agora ele está lá, apoiando sua cabeça, em pouco tempo a tampa será fechada, e ele terá seu doce descanso na sepultura.
A mortalha fúnebre foi levantada; havia paz no rosto do morto, um raio de sol caiu sobre ele; uma andorinha passou em seu voo rápido pelo caramanchão e girou, chilreando sobre a cabeça do homem morto.
Como é estranho, no entanto, - todos nós sabemos disso - pegar velhas cartas de nossa juventude e lê-las; faz uma vida inteira acordar, por assim dizer, com todas as suas esperanças, com todas as suas lembranças, com todas as suas tristezas. Quantas pessoas, como nós, em um tempo vivido com tanto carinho, agora vivem como se estivessem mortos para nós, e ainda vivem, mas por muito tempo não pensamos neles, contudo, ao nos lembrarmos de alguém, deveríamos sempre nos agarrar a essa lembrança para poder compartilhar nossas tristezas e alegrias.
A folha de carvalho murcha no livro lembra o amigo, amigo dos tempos de escola, amigo para a vida; ele afixou esta folha no boné do estudante, na floresta verde quando esse pacto foi selado para a vida.
- Onde ele está agora? – A folha escondida, lembra a amizade esquecida–! Agora temos uma planta de estufa estrangeira, muito boa para os jardins nórdicos – é como se ainda houvesse fragrância nessas folhas! ela a deu a ele, uma nobre do jardim de ervas nobre. A nenúfar, ele arrancou e molhou com lágrimas salgadas, essa flor nasce em águas doces. Há também uma urtiga, o que sua folha diz? O que ele estava pensando ao pegá-la, ao escondê-la? Outras surgem: o lírio do vale, da solidão da floresta e mais a folha de cabra ambas e outras adornam o vaso de flores da estalagem, por fim a folha de grama nua e afiada –!
A sirene em flor derrama seu cacho fresco e perfumado sobre a cabeça do morto –, a andorinha voa novamente: “Qvivit! qvivit!” – – Chegam os homens com pregos e com martelos, a tampa é colocada sobre o morto, que descansa a cabeça no livro mudo. Escondido - esquecido!